Em junho de 2020, um cliente (consulente) veio a mim para pedir uma análise de mapa astral completamente diferente e inusitada, criativa. Ele já tinha conhecimento de astrologia naquele momento e queria que eu analisasse 4 anos seguidos de sua vida (2017-2020) em que seu mapa natal estava bombardeado pelos trânsitos de Saturno e Netuno. Bombardeado é a palavra certa, pois parecia um tempo de guerra interna, em que esse tipo de contexto astrológico costuma atuar e sinalizar uma grande desconstrução das bases internas e dos eixos de sustenção da vida. Uma espécie de dissolução do ego, do Eu interno e do mundo conhecido ao redor. Uma vivência transformadora.
Mas o inusitado não foi ele pedir essa análise extensa e profunda, mas criar um texto artístico, inspirado nas análises astrológicas de cada ano. Sugeri então, que fossem divididos entre a versão luz e a versão sombra, de alguém que caminha pelos anos vivendo essa travessia interna de uma vida em dissolução. Em princípio essa ideia deixou ele meio contrariado, já que o que queria mesmo era que o tema abordasse somente a versão sombra. Por fim, insisti que se o texto era meu, eu tinha que dar o meu toque pessoal (claro).
Até finalizar o texto (em que escrevi toda a versão luz durante uma madrugada em meio à pandemia e conclui a versão sombra dias depois) eu não tinha conhecimento do que ele havia vivido, porque era parte da proposta dele eu viver a minha inspiração de forma autônoma e praticamente sem referências. Só me disse que foi um tempo de forte (e densa) conexão espiritual com sua ancestralidade e pediu que o texto se chamasse INVOCAÇÃO.
Como Saturno e Netuno estão agora e já há um tempo no céu do momento juntos e conjuntos, bombardeado nossa vida coletiva, e assim ainda vão ficar por um certo período de tempo, resolvi ler esse texto novamente e sentir se deveria publicar. Tomei um susto, ao perceber que ele fala de vivências universais (arquetípicas), que podem ser aplicadas a qualquer um de nós, em qualquer momento do espaço-tempo, se estivermos também vivendo um contexto astrológico em que Saturno e Netuno estejam juntos, bombardeado nossa vida.
Então resolvi apresentar aqui este texto artístico, fruto de um surto de inspiração minha (o que é bem característico do meu processo criativo) em meio à pandemia:
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INVOCAÇÃO
Luz: Neste ponto da caminhada da vida, surge um movimento duplo em que voltar às raízes é, ao mesmo tempo, mergulhar em um passado ancestral e se direcionar a um novo futuro. Um ponto de inflexão da vida, que permite à consciência a percepção de que o tempo é relativo e é no aqui-agora onde tudo acontece. Passado e futuro se fundem, como um canal de compreensão plena de tudo que constitui o presente: um presente. Aqui há um mistério, um desafio à consciência a vasculhar suas raizes, suas heranças, suas dores e delícias de ser e viver a si mesma, encarando tudo que a compõe. Como um ser multifacetado de diversas origens, despedaçadas em centenas de ancestrais, que se unem em um Eu, que agora aqui vive. Um Eu que busca se reencontrar consigo mesmo, ao buscar e juntar todos os pedacinhos de um passado perdido no tempo, em um quebra-cabeças bem encaixado com o agora. É neste ponto da caminhada, que surge uma nova composição de futuro, talvez inesperada e inusitada. Há uma disposição interna de que agora é preciso mergulhar nessas raízes, que parecem tão passadas e tão presentes. Há algo a se romper e algo a se unir, uma contradição que parece fazer todo sentido e sentido nenhum, mas que trouxe uma nova estrada a seguir e um outro horizonte a mirar. Um tempo novo se abre à sua frente, e anuncia que é tempo de escavacar o terreno de si mesmo e encontrar no escuro da noite, uma nova aurora. Mergulhar nas dores e encarar cada uma de frente: um Eu nu que se olha a si mesmo no olho do espelho de sua própria alma e desnuda as suas próprias dores, sem mais medo, porque já não há mais nada a esconder. Surge aqui um novo Eu, disposto a encarar esse despedaçamento da alma, em busca de se recompor (um dia) todo o quebra-cabeças de si mesmo, ao encontrar (finalmente) as peças que lhe faltavam.
Assim começa uma nova jornada.
Sombra: Há neste ponto, um acesso direto ao poder ancestral destrutivo, de tudo que não foi vivido nem superado na raiz coletiva-pessoal, de muitas vidas anteriores ao agora. O que pode levar o Eu a um processo instintivo e inconsciente (inconsequente) de invocar os mortos e tirar do armário os esqueletos de uma realidade paralela, sedenta de vingança ou compensação de todas as dores, que foram enterradas num passado mal-passado. Aqui encontra-se o gatilho da escolha por um caminho que (supostamente) se trilharia tranquilo sozinho e torna-se (à sua revelia) um caminho em conjunto, a toda raiz pessoal-coletiva, sedenta de reconhecimento e honrarias.
2° ano
Luz: Um novo caminho já se abriu e os primeiros passos já foram dados, agora a consciência segue firme em seu novo sentido. Não falta medo nem falta coragem, mas o novo é tão novo que começa a ir descascando essa alma, que segue sabendo que não será um caminho fácil. Por alguma razão, o mergulho para dentro mais parece um mergulho nas águas profundas do mar. Ou mais fundo ainda: no oceano de si mesmo. Um espaço infinito de múltiplas possibilidades e seres ora delicados ora assustadores, que ali coabitam em um meio muito incerto. Há sempre um perigo que ronda e sonda a consciência, o limite de onde começa e finda o Eu, que parece agora se decompor, trazendo uma sensação de fusão com o oceano de águas profundas (por ora turvas). Nesse infinito de si mesmo, surgem muitas dúvidas, incógnitas e mistérios. O encontro com o outro mais parece um delirante encontro com uma versão desconhecida e adormecida de um Eu, que nem sabe mais ser só eu. O outro chega tão encantador, com seu canto de sereia, que desnorteia toda tentativa de se manter são, nesse mundo onde agora tudo parece ser e acontecer em vão. Surge aí uma sensação de fragilidade, que em princípio nem existia, mais agora existe e é tão real, quanto o irreal de um mergulho no fundo do oceano mais profundo do Eu. Mesmo assim ele segue e (de surpresa) chega ao cerne da alma, e descobre que ali é exatamente o lugar em que também se pode brincar com o impossível, criar poderes mágicos, para lidar com todo ser ou susto que surgir pelo caminho. O caminho que não é mais um caminho, mas um mergulho no fundo de si mesmo, e é exatamente lá, onde é possível descobrir as mais belas pérolas, da essência do seu verdadeiro e secreto Eu.
E assim atravessa mais uma etapa dessa jornada.
Sombra: Abrem-se as portas aos infernos, que até então nem era sabido existir. Antes o que seria um mergulho, agora torna-se um afundar em terras movediças, onde não se sabe o amanhã. O tempo parece eterno, na dor de quem cava a cova de um ente querido, ou tão antigo, a ponto de nem se saber de sua existência. Mas que agora se faz aqui (sem remorsos) a cobrar uma dívida, que não era sequer sua. Abre-se um embate: um tempo de busca e fuga do que estava enraizado, e foi desenterrado como vivo, em uma realidade do agora infinito (um tempo sem tempo)... um embate ao reajuste cármico ancestral, de incorporação de um passado, que se faz presente; versus o Eu que busca estar liberto e viver o seu próprio Eu, sem amarras nem dívidas mal sanadas. É um tempo de dores sem delícias de ser quem se é.
3° ano
Luz: Mesmo ainda nadando em águas turvas, agora é possível chegar (por vezes) à superfície e tomar novo fôlego. Um novo olhar para além e para se deixar ver terra firme ou ser livre logo à frente. Só mais alguns mergulhos (ainda profundos) serão inevitáveis, embora com novos recursos e novos olhares para si e para o outro. Chegou a hora de tomar decisões e findar processos, que já estão saturados de buscas. Soltar bagagens, que não pertencem mais nem ao Eu nem ao momento. São bagagens de outros (tempos e seres), muito antigas, que perdem hoje o sentido que um dia tiveram. Um novo tempo sempre pede novos trajes e bagagens, já que um Eu que tanto viveu, precisa se renovar (um dia) e recomeçar. A bússola interna indica agora um outro norte e um novo destino, para esse Eu tão guerreiro, que agora só quer sossego. Nessa travessia da vida, as turbulências nunca findam, mas sempre é possível chegar mais forte a uma nova tempestade, quando se viveu e sobreviveu a tantas tormentas. Aqui a alma se sente mais sofrida ou abatida, cansada de tanto lutar. Talvez seja momento de reconhecer, que o tempo passa e desgasta um tanto o coração juvenil de um Eu guerreiro. Chegou o momento de dar uma pausa e reconhecer todo o trajeto percorrido, olhar para trás e ver o quanto se ganhou nessa jornada, e olhar para frente com a maturidade de quem carrega menos peso. O tanto que se mergulhou em si mesmo e o tanto que se superou a si mesmo. Pensamentos vão levando à deriva a consciência à terra firme e a se sentir mais livre, com um novo norte. A liberdade nem sempre equivale à situação ao redor, mas a tudo que o Eu foi capaz de amadurecer e reconhecer, que é a própria mente quem liberta a alma de toda restrição inconsciente.
E assim, ao fim dessa jornada, abre-se um novo tempo de transição.
Sombra: Há que se dar fim a toda dor e mesmo quando o poço está mais fundo que todo fundo, há que se ver luz. O fundo é onde não resta mais nada: o que tinha que ser arrancado já o foi, o que tinha que ser destroçado já deixou em carne viva, a alma que segue viva. Mas é justo lá, no fundo do poço profundo, que se pega impulso: o Eu recobra forças de buscar (mesmo que ainda em sonho) a chegar à superfície. Ainda há todo o oceano a se percorrer e toda dor a se superar, mas é tempo de escolhas e retomadas. É tempo de findar buscas e dores agudas, que rasgaram a alma e tornaram a vida menos colorida. Há que se preparar para um novo rumo e um novo norte mais à frente, em terra firme para ser livre.
4° ano
Luz: Surge aqui um novo norte, como redirecionamento final à jornada que se concluiu há pouco. Assim como um nó precisa unir duas pontas soltas, o novo destino busca ressignificar tudo o que veio à superfície, através dos mergulhos interiores, para assim jorrar esse conhecimento para o mundo. Surge naturalmente um movimento de verter os recursos internos em auxílio externo, a quem chega em busca de ajuda. Todo movimento de mergulho interior não foi em vão (embora muitas vezes parecesse que sim) e agora é possível compreender o sentido de tudo que foi vivido. A vida possui o seu próprio fluxo e permite chegar a sabedoria a quem precisa, gerando misteriosamente um elo entre aquele que muito viveu e aqueles que muito buscam saber viver. Claro que sabedoria não se ensina, mas a sabedoria de quem auxilia um outro, é que dá suporte para que esse outro Eu percorra seu próprio caminho, de encontro consigo. Unir essas pontas soltas, entre um ciclo que se finda e outro que inicia, é entender que o fim e o começo são partes fluidas de um mesmo processo. Saber percorrer essa transição, também faz parte da sabedoria sobre o tempo de cada coisa, percebendo que na natureza tudo é cíclico, e o fim de algo traz consigo o começo de um novo. Mesmo que muito se tenha vivido e muito se tenha sofrido, esse fôlego novo, que surge a cada começo de ciclo, é que mantém uma alma mestra seguindo na vida com o encanto de uma criança. Sempre se guiando e se motivando a deixar tudo seguir seu próprio caminho.
Assim mais uma nova jornada se inicia.
Sombra: Uma alma ferida nem sempre finda o que precisa de fim e nem sempre cura o que já está em tempo de cicatrizar. A ferida se mantém aberta e pode estar sempre purgando o que foi vivido e está antigo no agora. Um ciclo pode anunciar que findou o tempo de dor, mas a alma ferida pode não acompanhar o tempo e viver de lamento, por um outro tempo infinito de dor. Há que se abrir caminho no interno, para ser possível percorrer um novo caminho no mundo. Desatar nós de dores e se permitir unir fins e começos em novos laços, novas aberturas a surpresas, e ao acaso dessa nova jornada.
Clarissa Maia
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Fica aqui meus agradecimentos, pela proposta inusitada e pela confiança no meu trabalho (e capacidade de escrita artística), ao excêntrico e genial psicólogo André Feitosa (Andy).
Um abraço.